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DO KIT GAY
AO NOVO ENSINO MÉDIO

POR CARLOS AUGUSTO JÚNIOR

(Fotógrafo: Jacson Souza | Direção: Carlos Augusto)

RESISTÊNCIA | educação
Carlos Augusto Júnior    |   09 dez 2021_18h00 

Desde 2014, por pressões de ordem religiosa e empresarial, palavras como “gênero”, “diversidade sexual”, “orientação sexual”, “igualdade racial”, dentre outras, começaram a sumir dos principais regulamentos legais da educação brasileira. O documento mais importante, dentre os que foram profundamente alterados, é o Plano Nacional de Educação, o PNE, que estabelece diretrizes e metas para o desenvolvimento nacional, estadual e municipal de educação. À época, a notícia de que as palavras sobre gênero e igualdade racial haviam sido retiradas desse documento foi celebrada com festa pelas bancadas religiosas, enquanto do outro lado, também foi alvo de muitas críticas por pesquisadores(as) da área educacional, professores(as), entidades políticas e sociais, artistas, dentre tantos outros representantes contrários à medida. 
 
As pressões ideológicas, religiosas e empresariais contra a educação sexual para crianças e adolescentes estão ancoradas em ações como as que têm sido tomadas recentemente pelo governo Bolsonaro - conhecido pelo seu grande histórico de ataques a pessoas homossexuais e às políticas direcionadas à comunidade LGBTQIAP+. Durante toda a sua carreira política, o presidente buscou fortalecer a sua masculinidade, impor sua posição de homem viril e ser especialista em assuntos que desconhecia, sobretudo no que diz respeito ao que pode ou não ser ensinado em uma sala de aula. “Jovens parlamentares, este ano está sendo distribuído um 'kit gay' que estimula o homossexualismo e a promiscuidade. Temos de trazer esse tema aqui para dentro, votar essa questão, e não deixar que o governo leve esse tema para a garotada", discursou o então deputado federal no Congresso em 2011, ao mentir sobre a verdadeira proposta do material didático que estava sendo preparado pelo MEC a diversas escolas brasileiras naquele tempo.
 
O tal ‘Kit Gay’, como hoje é pejorativamente conhecido o material didático “Escola sem Homofobia”, viria a alterar decisivamente a discussão sobre gênero e diversidade sexual no Brasil. Rodeada de informações falsas e enviesadas, a polêmica instalada em Brasília era resultado de uma notícia falsa que veiculava, dentre tantas outras inverdades, que o governo Dilma intencionava distribuir às escolas um suposto kit que incitava crianças e jovens a se “tornarem homossexuais”. Bolsonaro e outros parlamentares evangélicos eram os principais críticos da proposta que, recentemente, foi utilizada pelos apoiadores do presidente na eleição realizada em 2018.
 
Na realidade, o material didático fazia parte do programa “Brasil sem Homofobia” e fora lançado pelo MEC ainda no primeiro mandato de governo da ex-presidenta Dilma Rousseff. O livro buscava promover o respeito aos Direitos Humanos por meio de vídeos e documentários educativos, mas quando estava perto de ser publicado, voltou a ser criticado pela ala mais reacionária do país, tornando-se o alvo principal das bancadas religiosas, dos setores mais conservadores da política brasileira e da sociedade civil e, logo, veio a ser o estopim para que a educação sexual nas escolas fosse amplamente criticada e para que se desse início a uma ampla campanha de desinformação sobre as políticas de inclusão ao diferente que estavam sendo promovidas até aquele momento.
 
Devido às pressões de setores reacionários, a divulgação do material educativo acabou sendo suspensa em maio de 2011, justamente quando o movimento político ideológico “Escola Sem Partido” ganhou maior adesão popular e se tornou mais ativo nas discussões sobre gênero e diversidade sexual na educação do país. Fundado pelo então procurador do estado de São Paulo, Miguel Nagib, o movimento político tinha o pretexto de efetivar uma educação supostamente neutra, sem pensamento político, menos doutrinadora. Em certa medida, a intenção também era fazer com que professores não repassassem a seus alunos suas concepções morais e étnicas, o que na visão da pesquisadora Margareth Diniz tratava-se muito mais de uma profunda inversão de discurso, sobretudo quando os grupos religiosos e conservadores falam sobre a educação sexual nas escolas.
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Margareth Diniz, professora universitária | Reprodução: TV UFOP

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Novo Ensino Médio chegará às escolas brasileiras sem promoção de debates sobre violência de gênero e diversidade sexual

Livros
Diniz é professora universitária e realiza pesquisas sobre Gêneros e Sexualidade em educação na Universidade Federal de Ouro Preto. “É muito comum  encontrar, no interior desses grupos [como o movimento Escola Sem Partido], discursos sobre uma suposta ‘ideologia de gênero’ que prega que as pessoas nascem sem um gênero definido e que elas têm liberdade de ficarem mudando de gênero como bem entenderem; ou ainda que a escola está mais preocupada em ensinar as crianças a fazer sexo do que ensinar a ler e escrever”. A fala de Diniz também aborda a sequência de ações de censura a temas sobre sexualidade que vêm modificando os documentos oficiais e regulamentares da educação brasileira.
 
Ao tratar exatamente de onde surgem esses discursos e por que eles são tão nocivos à diversidade, Margareth Diniz explica que essas teorias conspiratórias sobre a educação sexual até chegam a ser fantasiosas. “Elas vêm, em boa parte, de um movimento da Igreja Católica dos anos 2000, com a publicação de um livro sobre a defesa do gênero como algo definido por Deus. Esse movimento foi sempre no sentido de causar pânico, incentivando as famílias a fiscalizar os professores e professoras, reiterando que a discussão sobre sexualidade era encargo da família. Mas o que observamos, é que a família discute muito pouco sobre a sexualidade, justamente por ser considerada um tabu”.







De tão complexa que é a situação da homofobia no Brasil, quando algumas pessoas LGBTQIAP+ dizem se sentir desencaixadas na sociedade, ou até mesmo pecadoras, erradas, ou absolutamente diferentes da maioria, existe uma razão: fortes tentativas de grupos sociais e econômicos elitizados em dizimar as vivências LGBTQIAP+. Essa realidade, cheia de dados letais, parece se agravar ainda mais com a reformulação do Novo Ensino Médio, prevista para ser implementada em todas as escolas brasileiras até o ano que vem, em 2022. O projeto não leva em consideração a morte diária de pessoas LGBTQIAP+ no Brasil e menospreza conteúdos sobre diversidade sexual, ao não abrir espaço para essas discussões em sala de aula.

Em 2017, o Governo Temer alterou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Após alguns dias de muito “vai e volta”, com várias revisões prévias e inúmeras edições realizadas no documento original, o Ministério da Educação (MEC) encaminhou uma demanda ao Conselho Nacional da Educação (CNE), exigindo a supressão dos termos “gênero” e “orientação sexual” de trechos bem específicos e detalhados, que ainda restavam nesse documento. Até que, por fim, chegou a vez de alterar os dispositivos da LDB - Lei de Diretrizes e Bases, a partir de uma medida provisória que deu origem ao que atualmente se chama Nova Reforma do Ensino Médio.
 
Na visão dos especialistas, o desmonte do ensino sobre sexualidade nas escolas visa a supressão de direitos garantidos constitucionalmente a crianças e a adolescentes. Segundo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), essas pessoas deveriam ser protegidas de abusos de ordem sexual em qualquer ambiente da sociedade, sobretudo do ambiente familiar e estudantil. Segundo o Art. 5º do Estatuto, "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". 

Victor Pereira, mestre em Linguística e que se reconhece como uma pessoa LGBTQIAP+, pontua que no texto atual da LDB, em nenhum momento, é citada a importância do respeito às diversidades sexuais e de gênero, educação sexual, feminicídio, dentre tantos outros temas relevantes que foram apagados da vida estudantil de alunos e professores brasileiros. “A ausência dessas palavras contribui para a desinformação da nossa população, como para a perpetuação das mais variadas violências. Não se combate com eficiência aquilo que não se conhece”. 
 
O entendimento de Victor é similar ao da pesquisadora e professora da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), Dirce Zan, Doutora em Educação, que expõe as consequências de os principais documentos regulamentares não especificarem a abordagem correta e necessária de discussões sobre diversidade sexual na escola. “O grande risco é que, uma vez que não esteja explicitada no texto curricular a necessidade de que se trabalhe com essas temáticas, elas não se façam presentes na formação das e dos jovens brasileiros”.  
 
Para a pesquisadora, é evidente como a inclusão do tema no documento oficial, por si só, não garante a abordagem de conteúdos sobre educação sexual nos currículos escolares, mas o silêncio sobre eles torna ainda mais improvável que se faça presente na formação das e dos estudantes do ensino médio. Coordenadora estadual do EMPesquisa (Grupo Interinstitucional Ensino Médio em Pesquisa) e pesquisadora na área de Educação focada nas relações entre ensino médio, juventude e cultura, Dirce Zan também alerta para as recentes notícias sobre censura em temáticas voltadas para a educação sexual em diferentes escolas do país

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Parte 1

O caso de Criciúma 

Um dos exemplos desses episódios de censura é o caso que ocorreu com um professor de Criciúma-SC. No dia 25 de agosto de 2021, um professor de artes da Escola Municipal Pascoal Meller Criciúma, no estado de Santa Catarina, foi exonerado pelo prefeito Clésio Salvaro (PSDB). O motivo da demissão, segundo o prefeito da cidade, foi a apresentação em sala de aula do clipe da música “Etérea” realizada pelo professor. De autoria do cantor Criolo e Indicada ao Grammy Latino em 2019, na categoria Melhor Canção em Língua Portuguesa, a canção conta com mais de 1 milhão de visualizações no Youtube e explora em sua totalidade a temática do respeito à comunidade LGBTQIAP+ e busca desconstruir as regras da heteronormatividade, que cotidianamente exclui a existência de outras vivências. 
 
Em um vídeo publicado nas redes sociais, o político disse que a administração não concordava com o conteúdo "erotizado" e a "viadagem na sala de aula" e desqualificou o caráter profissional do professor no vídeo compartilhado no Facebook. “Estou determinando a exoneração imediata daquele professor que, em sala de aula, expôs um vídeo erotizado, de forma inapropriada, para os alunos da rede pública municipal. Nós não permitimos, nós não toleramos. Está demitido este, sei lá, profissional. Enquanto eu estiver aqui de plantão, esse tipo de atitude não vai acontecer”, anunciou o prefeito na internet.
 
Um dia após a exoneração, a cidade de Criciúma foi marcada por protestos contra a atitude do prefeito. Os manifestantes picharam a Catedral São José em Criciúma, com frases “Fora Salvaro” e “homofobia é crime”, escritas nas paredes. Também foi marcada uma “Parada LGBTQIAP+” no Parque da Prefeitura. Como de costume, o artista Criolo se pronunciou publicamente nas redes sociais para lamentar o episódio. "Mais uma vez, desde seu lançamento, o clipe e o documentário da música Etérea, com participação de representantes de coletivos LGBTQIAP+ nacionais, abrem espaço para o debate na sociedade brasileira". 
 
Criolo também recordou que a canção já foi exibida em diversos outros espaços de ensino e de arte. Tanto o clipe, como o documentário, sem nenhum tipo de restrição pelas diretrizes do Youtube, já foram exibidos em diversos festivais de cinema e instituições de arte, música e dança, como a Filmoteca da Universidade Nacional do México pelo mundo, ao longo dos quase dois anos de suas trajetórias internacionais. 

Altafonte Network S.L. (em nome de Oloko Records); Polaris Hub AB, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, LatinAutorPerf e 3 associações de direitos musicais (Reprodução: Canal do artista Criolo no Youtube)

Dias após o ocorrido, as ações na justiça começaram a ganhar destaque. A Procuradoria-Geral de Justiça, órgão do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), deu início à apuração do caso para averiguar se o prefeito de Criciúma, Clésio Salvaro (PSDB), havia cometido crime com as declarações. Essa seria a segunda investigação aberta pelo MPSC contra o prefeito. A primeira delas foi instaurada na área dos direitos humanos e investigava se houve prejuízo à dignidade humana de caráter coletivo com ofensa ao público LGBTQIAP+. 

Segundo Margareth Diniz, a escola sempre se esquivou de tratar abertamente sobre sexualidade, justamente pelo tabu enraizado socialmente nas instituições políticas e religiosas que, de todo modo, interferem na prática educacional. “A escola, por exemplo, atua como um dispositivo de controle, uma vez que tem a função complexa de ensinar sobre a sexualidade (a fim de perpetuar a cisheteronormatividade) e contornar e conter os corpos, para que não expressem suas sexualidades”. É o que tem sido visto nacionalmente, ao se observar as últimas políticas educacionais referentes à diversidade sexual no Brasil: exclusão de palavras, projetos e caminhos que poderiam combater o preconceito na sala de aula. 
 
Com o início da quarentena e do distanciamento social, ocasionados pela pandemia de Covid-19, as vidas de pessoas trans e travestis ficaram ainda mais vulneráveis a ataques lgbtfóbicos também fora do ambiente escolar. Segundo a ANTRA, só nos primeiros oito meses de 2020, quando o número de mortos em decorrência da covid-19 começou a ganhar proporções ainda maior no Brasil, os assassinatos de pessoas trans registraram um aumento de 70% em relação ao mesmo período em 2019, saltando de 76 casos para 129 em menos de um ano. A violência constante, aliada ao preconceito e à discriminação, atinge diretamente essa população, que vive com uma série de direitos negados por diversas instituições do país. 
 
Um desses direitos negados se refere especificamente ao direito à educação. Dados sobre  a realidade de pessoas trans e travestis na escola ainda são escassos, mas de acordo com uma pesquisa de 2017, realizada pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% dos trans abandonaram o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos. Ainda de acordo com um levantamento da Associação dos Estudantes Secundaristas do Estado do Rio de Janeiro, a AERJ - 67,8% dos estudantes consultados afirmam ter sofrido ou presenciado algum tipo de agressão devido à sua sexualidade no ambiente de ensino e 75,9% dos entrevistados responderam que não se sentiam seguros para buscar apoio da direção da escola. 
 
“Muita gente ainda acha que falar sobre educação sexual é ensinar a criança a se relacionar sexualmente com alguém, quando na verdade não tem nada disso”, alerta a professora Ana Carolina, que se reconhece com uma mulher LGBTQIAP+ e preta. “Isso prejudica a denúncia de situações de abuso, porque as crianças não sabem identificar e, caso saibam, não sabem como reagir ou a quem recorrer sem que sua segurança seja colocada em risco. Acho que isso é o mais gritante para mim”. Também segundo a professora, a intenção do Novo Ensino Médio, do modo como está sendo orquestrado é justamente silenciar professores e professoras sobre temas que pertençam à comunidade LGBTQIAP+. “Fico preocupada porque isso representa um grande retrocesso em relação a tudo o que falei anteriormente”. 

'É evidente a centralidade de disciplinas como matemática e Língua Portuguesa e a redução de Ciências Humanas e Artes no Novo Ensino Médio'

Bastaram menos de 25 dias, após o golpe parlamentar contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, para a Reforma do Ensino Médio avançar nas esferas governamentais e chegar às mesas do Congresso Nacional em 2016. Com o cenário político da época conturbado pela rápida transição de governo e pelos desdobramentos do pós-impeachment, haviam se passado apenas três semanas da deposição, quando o então presidente interino Michel Temer apresentou aos parlamentares a medida provisória nº 746/16, que viria a alterar os antigos dispositivos legais da LDB - Lei de Diretrizes e Bases, dando lugar ao que hoje se chama de Reforma do Ensino Médio. 
 
Para a professora da Unicamp, Dirce Zan, a Medida Provisória explicitou o alinhamento que o governo federal pretendia dar para o currículo em consonância com a BNCC e com a flexibilização que já se desenhava na sua forma de oferta e na organização curricular. “Além disso, é evidente a centralidade de disciplinas como Matemática e Língua Portuguesa e a redução da presença de disciplinas da área de Ciências Humanas e Artes. Dessa MP chegamos à Lei 13.415/2017 que está em vigor e que mantém vários dos princípios já destacados anteriormente”.
















O texto, que continha ao todo seis páginas e que fora assinado por Michel Temer e pelo ex-ministro da educação, José Mendonça Bezerra Filho, defensor ferrenho das mudanças, teve ampla adesão dos partidos de direita, de centro e, sobretudo, da bancada evangélica, em sua maioria composta por parlamentares do DEM, PSL, PP, PL, NOVO e PSD. Também conhecida por se articular contra temas que envolviam discussões sobre igualdade de gênero, casamento homoafetivo e homofobia, a Bancada Evangélica foi um dos primeiros grupos congressistas a celebrar a aprovação da matéria e logo passaria a liderar as discussões sobre Escola sem Partido na Câmara, pouco tempo após o anúncio da prisão do ex-deputado Eduardo Cunha, relator da comissão do impeachment.
 
Mesmo com as manifestações populares contrárias às decisões que estavam sendo impostas à educação nacional em Brasília e que impactam escolas de todo o país, a Medida Provisória foi definitivamente aprovada pela Câmara de Deputados no dia 13 de dezembro de 2016, com uma agilidade incomum, ao se levar em conta que a média de tempo gasto para um projeto ser tramitado na Câmara de Deputados é de aproximadamente mil dias. Ao todo, foram 263 votos favoráveis, 106 contrários e três abstenções, sendo o sudeste a região a liderar o número de votos a favor, somando um total de 92 representantes da região sudeste do país favoráveis e 42 parlamentares contrários à medida.
 
Em consonância com bancadas políticas conservadoras e antidemocráticas, o Novo Ensino Médio intenciona, dentre outras medidas, ofertar apenas a língua portuguesa, matemática e inglês como disciplinas obrigatórias, deixando de lado a obrigatoriedade de ofertar a todos os alunos disciplinas como arte, educação física, sociologia e filosofia. Segundo o pesquisador e professor Victor Pereira, o Novo Ensino Médio, como vem sendo proposto pelo Governo Bolsonaro, “enfatiza uma formação tecnicista, que já prevaleceu em nosso país durante a ditadura militar”. 
 
Nessa época, também conhecida como anos de chumbo, a homossexualidade era tratada como doença, pecado, perigo social e atentado à família. Os governos militares também se referiam aos homossexuais como um “modo de ser” que era parte de uma “conspiração comunista”. Foi durante a Ditadura Militar que surgiram formas vexatórias de reprimir quem não fosse heterossexual. As pessoas LGBTQIAP+ sofriam discriminação em locais de trabalho, eram vítimas contínuas de assédios, havia publicação de decretos proibitivos à homossexualidade e grandes campanhas com discursos pregando ou exigindo o respeito à moral e aos bons costumes. 
 
De modo similar à forma como o atual governo do Brasil vem procedendo em relação à retirada de conteúdos sobre sexualidade dos livros didáticos e dos currículos escolares, a tentativa de controlar a educação durante a Ditadura Militar surgiu a partir de censura aos conteúdos ensinados nas salas de aula, aos livros didáticos e aos termos que podiam ser ou não ditos em relação a várias temáticas. As disciplinas que tratavam diretamente sobre problemas sociais, como História, Sociologia e Filosofia, foram as mais perseguidas pelos militares. 
 
Contrário às disciplinas de ciências humanas e sociais, antes mesmo de chegar à presidência da república, Bolsonaro já dizia que as escolas formavam apenas “militantes políticos”, em vez de preparar os estudantes para o mercado de trabalho. Durante uma de suas falas na inauguração de uma escola cívico-militar na cidade do Rio de Janeiro, o presidente se posicionou de modo similar ao objetivo do Novo Ensino Médio, no que se refere à preparação de jovens para o mercado de trabalho. “Com seus 20, 21, 22, 25 anos, ele (o estudante) será formado um bom profissional. Vai ter um bom emprego, um bom patrão, um bom liberal, e não apenas, como acontece em parte do Brasil ainda, apenas um militante político”.
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Dirce Zan é professora de Educação da Unicamp  | Reprodução: Portal Unicamp

"Esse modelo atende muito bem aos anseios conservadores que encontraram solo fértil em nosso país nos últimos anos"

Victor Pereira (professor do Ensino Médio e Superior)

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Victor Pereira se reconhece como uma pessoa LGBTQIAP+ e é professor de Letras da Universidade do Estado da Bahia | Reprodução: Arquivo pessoal

Na visão de Victor Pereira, ao retirar o foco de questões humanistas e sociais da grande de conteúdo formativo, o Novo Ensino Médio objetiva formar pessoas para o mercado de trabalho, de modo a corresponder aos interesses político-pessoais de partidos e bancadas reacionárias, além de fornecer mão de obra barata ao mercado brasileiro. “Esse modelo atende muito bem aos anseios conservadores que encontraram solo fértil em nosso país nos últimos anos. Formam-se, rapidamente, uma mão de obra barata, contudo compromete a formação humana e social do indivíduo, visto que serão silenciadas discussões importantes capazes de ajudá-lo a reivindicar muitos de seus direitos”.
 
Ainda para a professora Dirce Zan, há interesses políticos e econômicos que sustentam a Reforma atual. “Aliás, a definição e organização curricular não é uma decisão tomada de forma neutra, tecnicamente, mas resulta dos interesses que mobilizam determinado momento histórico e das disputas entre grupos de poder. No caso da atual Reforma, destacaria a ampliação da carga horária do curso, através do ensino integral mesclada à possibilidade de que parte da carga horária seja ofertada na modalidade de EAD. Aqui cria-se um impasse para a permanência na escola de estudantes que necessitam trabalhar, ainda mais em um contexto de finalização de políticas públicas como Bolsa Família”.

Tratando diretamente sobre os riscos de profissionalizar a aprendizagem dos estudantes e, somado a isso, dificultar o debate sobre igualdade de gênero e liberdade sexual, Dirce Zan também aponta para o fato de que as escolas têm enfrentado desafios cotidianos para abarcar e abraçar as diferenças que cada vez se tornam mais presentes nas salas de aula. “Um tema importante é o do nome social, por exemplo. O direito da e do estudante de ser nomeado em acordo com sua identidade de gênero, da forma como ele ou ela escolheram para essa nomeação. A garantia desse direito em sala de aula é uma tarefa que depende muito da atuação docente e a sala de aula precisa ser um espaço de respeito para que o diálogo se efetive e nós docentes temos uma responsabilidade muito grande nesse sentido”.
Na visão de Victor Pereira, ao retirar o foco de questões humanistas e sociais da grande de conteúdo formativo, o Novo Ensino Médio objetiva formar pessoas para o mercado de trabalho, de modo a corresponder aos interesses político-pessoais de partidos e bancadas reacionárias, além de fornecer mão de obra barata ao mercado brasileiro. “Esse modelo atende muito bem aos anseios conservadores que encontraram solo fértil em nosso país nos últimos anos. Formam-se, rapidamente, uma mão de obra barata, contudo compromete a formação humana e social do indivíduo, visto que serão silenciadas discussões importantes capazes de ajudá-lo a reivindicar muitos de seus direitos”.
 
Ainda para a professora Dirce, há interesses políticos e econômicos que sustentam a Reforma atual. “Aliás, a definição e organização curricular não é uma decisão tomada de forma neutra, tecnicamente, mas resulta dos interesses que mobilizam determinado momento histórico e das disputas entre grupos de poder. No caso da atual Reforma, destacaria a ampliação da carga horária do curso, através do ensino integral mesclada à possibilidade de que parte da carga horária seja ofertada na modalidade de EAD. Aqui cria-se um impasse para a permanência na escola de estudantes que necessitam trabalhar, ainda mais em um contexto de finalização de políticas públicas como Bolsa Família”.

Tratando diretamente sobre os riscos de profissionalizar a aprendizagem dos estudantes e, somado a isso, dificultar o debate sobre igualdade de gênero e liberdade sexual, Dirce também aponta para o fato de que as escolas têm enfrentado desafios cotidianos para abarcar e abraçar as diferenças que cada vez se tornam mais presentes nas salas de aula. “Um tema importante é o do nome social, por exemplo. O direito da e do estudante de ser nomeado em acordo com sua identidade de gênero, da forma como ele ou ela escolheram para essa nomeação. A garantia desse direito em sala de aula é uma tarefa que depende muito da atuação docente e a sala de aula precisa ser um espaço de respeito para que o diálogo se efetive e nós docentes temos uma responsabilidade muito grande nesse sentido”.

Segundo o ECA, a escola deve promover ações necessárias para a permanência dos estudantes no sistema educacional

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o maior e mais importante marco jurídico destinado à proteção dos direitos da infância e da juventude no Brasil, em seu artigo 53 da Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990, também versa sobre a importância da educação para a emancipação cidadã, exigindo que a escola promova ações necessárias para a permanência dos estudantes no sistema educacional, assegurando condições iguais de acesso a todos e todas, respeito pelos seus educadores, dentre outros direitos. 
 
Antes do ECA, as leis brasileiras não indicavam nem faziam referência a mecanismos de proteção de meninas e meninos contra situações de abuso e exploração sexual. Só com a inclusão do artigo 130 no Estatuto que as crianças e adolescentes passaram a ser protegidos juridicamente de abusos sexuais dentro de suas casas, afastando as vítimas de seu agressor e determinando penalidades específicas para quem praticar crimes a menores.

Na visão do educador André Couto [nome fictício], que é professor de Português em uma escola do estado do Espírito Santo, a urgência de fornecer educação sexual na escola é perceptível ao se observar como os alunos e as alunas acabam buscando outras fontes de informação e consumindo outros tipos de conteúdos, até mesmo ilegais e não-educativos, para entender sobre o seu próprio corpo, descobrir seus prazeres e pensar a sua sexualidade. “Percebo que a educação sexual, apesar de ser um tema extremamente importante, é pouco discutida na escola e, principalmente, em casa. A partir da minha experiência em sala de aula, pude perceber que, entre os meninos, a educação sexual se dá por meio da pornografia, enquanto entre as meninas as experiências sexuais são compartilhadas, principalmente, a partir das vivências das outras colegas. Sendo assim, esse é um tema que fica totalmente marginalizado”.
 
André chama de falácia a forma como muitas pessoas contrárias à educação sexual encaram o assunto. “Eles alegam que será ensinado às crianças como fazer sexo ou que as crianças serão sexualizadas. Eles ignoram dados como os altos índices de gravidez na adolescência no Brasil, sem contar os índices de abusos. Sei que tenho alunas e alunos de 13 e 14 anos que já têm vida sexual ativa, o que não sei é se eles têm noção de como se cuidar, se proteger, a quem recorrer quando precisarem, como e onde fazer um exame. André também diz conhecer professores que orientam os alunos sempre que podem e que ele próprio sempre tenta se encarregar desse trabalho. “Não são todos os alunos que sabem ou que se sentem à vontade para se abrirem com a gente, assim como não são todos os professores que têm preparo e formação para lidar com determinados casos. Por isso, penso que é somente com uma disciplina obrigatória sobre educação sexual que os alunos terão, de fato, acesso à informações de qualidade e filtrada para viverem de forma saudável”. 
 
Em pesquisa realizada pelo Datafolha em 2019, 54% da população brasileira disse ser favorável à educação sexual nas escolas. “Discutir sobre sexualidade é de extrema importância, tanto no sentido de educar sobre orientação sexual, promovendo as potencialidades de cada um e diminuindo o preconceito, até a prevenção de situações como abuso sexual, que podem ocorrem em casa, por exemplo, e criança não ter consciência do que está acontecendo”, explica o psicólogo João Brod Jacobs, que se identifica como uma pessoa LGBTQIAP+ e atende majoritariamente pessoas pertencentes à comunidade em suas sessões de terapia. 
 
Ao contrário do que pensa o senso comum, João explica que a Educação Sexual possibilita a crianças e adolescentes a conhecerem os abusos sexuais e relatarem situações de violência a alguém de confiança. Em sua visão, a escola, muitas vezes, é o único local onde a criança poderá se sentir segura para contar sobre as violências que sofre em casa para um professor ou professora, ou a qualquer outra pessoa em que sentir confiança e acolhimento. O que os dados sobre violência sexual infantil no Brasil mostram é que o maior índice de abusos sexuais contra crianças e adolescentes acontecem justamente em casa e, geralmente, são praticados por pessoas conhecidas, às vezes um parente ou amigo da família.

Segundo um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Instituto Sou da Paz e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), 84% dos casos de abuso sexual infantil ocorrem dentro da residência do jovem, e 75% das denúncias de violência são de estupro. Além disso, o relatório também aponta que o fechamento das escolas durante a pandemia foi vetor da diminuição de denúncias, já que professores frequentemente conseguiam identificar a vítima, além de tomar providências. Ainda de acordo com o Conselho Tutelar do Rio Pequeno e Raposo Tavares, na Zona Oeste de São Paulo, as denúncias de abuso sexual, agressão física e maus-tratos contra crianças e adolescentes, que ocorreram nos períodos mais críticos da pandemia, durante os meses de janeiro e abril de 2021, cresceram 670% em relação à mesma época do ano passado.
 
Para o psicólogo João Brod, ao eliminar conteúdos sobre a diversidade sexual de gênero na sala de aula, a escola também coloca em perigo a vida de pessoas que sofrem com violências não somente em casa, mas também na própria sala de aula. Ele ainda esclarece como a falta de discussões sobre sexualidades podem acabar reprimindo ainda mais quem não se encaixa nos padrões heteronormativos. 
 
Nos últimos meses, o Presidente da República tem retomado ao cenário político e midiático com seus discursos contrários à educação sexual nas escolas e vetado um dos projetos de saúde pública mais importantes para vida de meninas estudantes - a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para pessoas em situação de vulnerabilidade. Ironicamente, Bolsonaro disse que as mulheres "começaram a menstruar" durante seu governo e que “no governo do PT as mulheres não menstruavam, no do PSDB não menstruava também”. 
 
Apesar de tratar o assunto com piadas, as pesquisas mostram que essa realidade tem impacto ainda maior quando medidas urgentes e necessárias não são tomadas pelo governo brasileiro. Segundo um relatório realizado pelo UNFPA e UNICEF, a Pobreza Menstrual no Brasil atinge mais de 4 milhões de jovens, que não possuem itens básicos de higiene nas escolas quando estão menstruadas e 713 mil delas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio.

Com todos os graves problemas que há décadas afetam a educação brasileira, o Novo Ensino chega às escolas brasileiras em 2022, sem que políticas públicas e mínimas ofertas de formação, projetos e outras abordagens de inclusão, igualdade social e econômica e de acesso à saúde sejam realmente efetivadas para a melhoria do ambiente escolar e a igualdade de oportunidades no Brasil.
Confira as entrevistas
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